segunda-feira, 19 de março de 2012

Milton Peloso da Silva – 1911 a 2011 Fala em Novembro de 2011, na festa dos “100 anos mais” - depoimento de Ranulfo (agora escrito)

Recordar alguém não é contar tudo sobre essa pessoa. Recordar é passar de novo pelo coração, tornar presente a memória de alguém, através de fatos e momentos, com a intenção de animar a nós mesmos e a outras gerações. A memória paira para além do tempo histórico convencional - se eterniza pelo peso do seu significado. Não se confunde com elogio barato, saudosismo ou melosa curtição.

Começo com duas observações gerais. A primeira, é que meu pai representa uma superação. Como negro, pobre, analfabeta, boêmio e assalariado “tinha tudo pra dar errado”. Mas, sua busca pelo justeza, a contribuição de pessoas influentes na sua vida, e seu esforço pessoal mudaram o fim de um começo que poderia dar em desvio ou torná-lo em apenas mais um. A segunda, é relembrar que quando destacamos pontos positivos de alguém, não negamos seus prováveis equívocos; aliás, quase sempre, na ponta de nossas virtudes se situam também nossos defeitos.
De forma breve, como convém ao ato, e desafiando outros para novos registros, destaco algumas marcas que guardei da figura de “Seu Félix”, sobretudo, dos meus primeiros 13 anos (1945 – 1958). Sei que, apesar do esforço, muita coisa pode ser releitura do vivido. Mas, guardo de meu pai a imagem de:
Um negro pândego, festeiro (baile, “festa do divino”, carnaval), “bossista” (vestia linho branco, sapato engraxado), cheio de pavulagem (exigente), enxerido, seresteiro, cheio do ritmo, canção e dança (tocador de violão) e amante da poesia (“meus oito anos”)... nascido em novembro.
Um trabalhador convicto de que toda pessoa deve viver do próprio trabalho e que, mesmo o achado, continua uma apropriação indébita, pois, honestidade é nunca ficar com o alheio. Exigia saber a origem de tudo que chegava em casa, achado, comprado, ganhado...
Assimilou o profissionalismo de fazer com capricho, mesmo que demorasse. De fazer, não de falar. Exigente consigo, e intransigente na cobrança do combinado. Metódico, seu tempo verbal era o mais-que-perfeito, beirando o perfeccionismo. “Chegar na onça”, então, para ele era o fim.
Uma pessoa que reagia a toda forma de mentira, da opinião sem base real (“eu acho”). Gostava do sim e do não claros. Adorava ter opinião própria, de não “andar pela cabeça dos outros feito piolho”, discordava de escritores, ainda que fossem grandes teólogos.
Ensinava a necessidade de se tomar a iniciativa, sem precisar a “vara de ferrão”, nem pedir licença para fazer coisas oportunas. Para saudar o novo bispo D. Tiago, preparou um discurso pela cruzada da Vila Bode e, me mandou fazê-lo, escrito em enorme folha de papel.
Na sua pedagogia, raramente surrava. Dizia que “bater faz a pessoa ficar sem-vergonha”. Preferia a conversa macia, cheia de moral e conselhos, mais eficaz que o cinturão. Um seu olhar de “esguelha”, valia mais do que mil palavras. E a gente mudava rápido de atitude.
Mas, conversar não era só ralhar. Uma vez, me falou que, na vida, três coisas não estavam em discussão: ler a Bíblia (mesmo contra a orientação dos padres); estudar (a menor nota admitida era 90); e gostar dos pobres. Dizia que religião era coisa boa, mas não era indispensável.
Não vivi sua fase amarga e inútil quando tentou usar o autoritarismo para canalizar a sadia rebeldia dos filhos e garantir a obediência formal. Guardo, então, uma imagem de alguém “mão-aberta”, contador de piadas, generoso na merenda de seus acompanhantes.
Em geral, destacamos o artista engenhoso e criativo. Por isso, desta vez, prefiro destacar o homem curioso, faminto do saber, leitor incansável, o ensinador de cantigas de roda, o hábil contador de histórias cuja dramaticidade nos fascinava (assombrações, romances, poemas).
Mudar fácil ou empacar são os extremos da mesma fraqueza. Custava-lhe muito romper sua decisão e teimosia. Mas, cedia na opinião e nos deixava ir ao cinema depois de proibir. No final da vida, entendeu que a liberdade dos filhos era a "saída da casca" que ele mesmo provocara e pela qual se doou inteiro.

sábado, 10 de março de 2012

SEU FÉLIX VIVE! - Milton Peloso da Silva – #20/11/1911 +04/03/1975 (Centenário de nascimento)

Nossa educação não nos ajudou a cultivar a memória de nossos antepassados de sangue. Não cuidamos de saber a origem nem a trajetória de nossos pais. Como não despertamos para essa curiosidade, temos dificuldades em reconstituir sua história. Não perguntamos e nem tampouco registramos as informações que nos deram sobre sua origem, porque não estávamos despertos para esse fato. Agora, já não há como perguntar-lhes, diretamente; são poucos os registros documentais e as poucas testemunhas que vivem estão com a memória insegura. Assim, temos que recorrer às vagas lembranças e, com os mosaicos, quem sabe, montar uma imagem e um perfil.

      Comecemos pelo nome. Como seria o nome de nosso Pai, neto de uma escrava?  Milton ou Miltom? - (v. Certidão de Batismo de Ranulfo) Peloso ou Pelozo? – (v. sua Certidão de Reservista)  ou Peluso? – (v. Certidão de Batismo) da Silva. Papai, foi batizado na Vila Curuai, Lago Grande da Franca, em 12/09/1912 com o nome de Milton Peluso da Silva. Porque recebeu o sobrenome de Peloso (tirado de seu padrinho Rafael) se seu pai se chamava Bernardino Francisco da Silva e sua mãe se chamava Deolinda (ou Deolindina? – v. Certidão de Casamento) Maria de Nazaré? É provável que haja desatenções ortográficas nos registros, mas também dúvida sobre seu pai, já que seu batistério o chama de  filho “ilegítimo” (v. Certidão de Batismo) quer dizer, fora do casamento religioso. Se fosse pelo costume africano onde a mãe dava seu sobrenome aos filhos – vovó Deolinda era negra filha de uma escrava – poderia ter  herdado “Nazaré” da mãe, como aliás, aconteceu com outros filhos e filhas.

      Há outros Pelosos no Brasil, mas não pertencemos à sua árvore genealógica. Tudo indica que  se originam de diversos ramos de famílias italianas. O Rafael que deu o sobrenome a papai teve duas filhas. O atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Peluso, é filho de uma dessas filhas. Uma vez elas estiveram em nossa casa, averiguando se o Peloso da nossa família tinha laços de sangue com sua família. Elas queriam conversar sobre herança, repartição de patrimônio... Foram informadas que a referência familiar era apenas acidental. 

      De onde vem o nome Félix com o qual foi conhecido toda a vida? Seria apelido, agrado, como sucede a tanta gente, ou teria algum significado especial? Tia Luiza conta que, um dia, lá no Piraquara, sua mãe reuniu a filharada e apresentou o Félix; a partir daí, todos passaram a tratá-lo como “mano Félix”. Lembro-me de um fato curioso, dado sua conhecida postura “certinha”, acontecido, em 1963. Papai espertamente, mandou dar fim a um monte de carnês de cobrança endereçados à R. São Sebastião, 1233, em nome de Félix Peloso pois, seu nome não era Félix, justificava ele. No dia em ele faleceu, para avisar amigos e parentes, a nota na Rádio Rural dizia: noticiamos a morte de Milton Peloso da Silva que, em vida, se chamava Félix Peloso...

Desafio – recontar o que em outras ocasiões já relembramos, e falar de outros tópicos de sua vida como, por exemplo:
·   o lugar de nascimento - Lago Grande, era pescador, trabalhava em tiração de madeira
·  dizer que veio para trabalhar na usina de Força e Luz, depois transformado em Mercado Municipal e recentemente restaurado, em Santarém,  mas foi pra Belterra
·   comentar sobre seu Perfil – trabalhador, exigente, perseverante e até teimoso, paciente, apaixonado, reconhecida  liderança, solene (cheio de rituais – paletó de linho branco, chapéu de massa), honesto, mão aberta, de amizades duradouras, exímio seringueiro, barbeiro, carpinteiro, armador de casas, sabia trabalhar com barro, tecer com palha e talas - abanos, peneiras, tipitis - amante da leitura (lia o domingo inteiro) e das longas conversas, boêmio, tocador de violão... era curioso, gostava  de esculpir, desenhar, escrever, declamar poesia e romances (literatura de cordel), cantar cânticos religiosos e canções românticas,
·   Lembrar que “se metia” em política e era baratista militante (Barata interventor populista, colocado por Getúlio Vargas e que foi influente governador do Pará), o que o confrontava com vários de seus amigos que eram da Coligação, dirigida pela UDN. No período eleitoral, fazia campanha aberta pelos candidatos baratistas que se organizavam no Partido Social Democrático.
·     que às vezes se emburrava... confundia autoridade com autoritarismo... batia pouco, mas seus ralhos e suas doídas lições de moral atingiam pro dentro... guardava rancores e sofria com suas mágoas
·     veio o tempo da Aposentadoria em setembro de 73... mas poucos meses depois... (Ranulfo Peloso)